Você também sente saudade de quando os carros tinham personalidades distintas? Escolher um ia além das especificações técnicas. Tração traseira ou dianteira? Estabilidade em curvas ou melhor desempenho em retas? Torque ou potência? Cavalaria entregue em baixa ou em alta? Conforto ou robustez? Motor arisco ou mais elástico?
Predileções à parte, a verdade é que, como eles não apresentavam o conjunto completo dessas qualidades, a escolha era baseada em características individuais, particulares, quase um processo de identificação, como se os veículos fossem dotados de uma espécie de caráter e tivessem uma impressão digital, uma personalidade.
A popularização dos carros foi acompanhada por diversas demandas de mercado e, com ela, várias características particulares passaram a se configurar como itens de série. Os carros perderam a sua singularidade. Segurança, conforto, desempenho, força, durabilidade, autonomia, equilíbrio e tantas outras se tornaram comuns, e os traços de uma determinada característica permaneceram restritos aos produtos caros e de nicho.
Hoje, todos os carros são iguais. Fenômeno também encontrado nos profissionais do mundo corporativo. Todos têm o mesmo pacote de competências, se assim podemos dizer. São dotados de alta tecnologia, de um conjunto robusto de acessórios e funcionalidades, mas perderam suas antigas particularidades que marcavam suas personalidades. O super desenvolvimento de competências em série inaugurou o lugar comum, mediano. Os automóveis passaram a ser artefatos funcionais.
Essa homogeneização também se reflete nos ambientes corporativos.
Profissionais frequentemente seguem caminhos idênticos: os mesmos cursos, experiências, formações, críticas, posicionamentos e certificações. Os mesmos desejos, objetivos e perspectivas, a mesma forma de pensar e os mesmos projetos de vida. Medos, receios, gaps e dúvidas semelhantes, com carreiras idênticas e desenvolvidas em cima das mesmas competências. De forma semelhante aos carros, também se tornaram iguais. Passaram a enfatizar a busca de instrução e o desenvolvimento de competências e não perceberam que essa uniformidade pode encobrir suas personalidades.
A palavra personalidade deriva do latim persona, que significa máscara. Originalmente, ela descreve um conjunto de traços que definem a individualidade de uma pessoa. É o conjunto de características que forma o alicerce para o comportamento de cada um, revelando uma espécie de predisposição ou tendência que uma pessoa tem de se comportar de determinada maneira. A personalidade se revela na forma de pensar, de se expressar, no tipo de interesse e na maneira de lidar com situações diversas. Engloba uma mistura de características, atitudes, valores e crenças que são únicas para cada indivíduo. Por outro lado, as competências formam o conjunto de conhecimentos, habilidades, atitudes e comportamentos que permitem alguém executar tarefas de forma eficaz.
Apesar das diferenças, personalidade e competências podem coexistir. O problema existe quando as competências e o conhecimento suprimem a personalidade, levando à uniformidade e à mediocridade. Nivelar pelo gosto médio, ou pelas expectativas alheias, camufla o aspecto visível que compõe o caráter individual de uma pessoa. A mediocridade aniquila a personalidade e nos pasteuriza, acobertando nossa singularidade.
É humanamente impossível considerar que a força de trabalho perdeu a crítica, a criatividade, sua capacidade de trazer e criar soluções e imprimir identidades. Que ninguém tem ideias e pensamentos distintos que possam prevalecer e dirigir as suas escolhas, preservando a capacidade de solução de problemas e identidade única. Óbvio que não. O problema é que o excesso pela busca de conhecimento ganhou protagonismo exagerado. O foco excessivo no desenvolvimento de competências padronizadas está nivelando as características individuais pelo gosto médio, nos tornando iguais.
A verdadeira satisfação e o senso de realização surgem quando expressamos a nossa personalidade. Encontrar qualidade de vida está diretamente ligado a isso. Encontrar a felicidade depende dessa expressão genuína. Minha esperança é apenas não perder a fé de que temos o chip da individualidade e do pensamento distinto, e que podemos equilibrá-los com o nosso desenvolvimento técnico.
Em um contexto empresarial, trazer à tona a personalidade é um importante papel de todo sócio gestor, de todo líder. Soluções criativas, mudanças e saídas originais nascem a partir disso. Essa responsabilidade deve, sim, ser um item de série a ser observado nos papéis e responsabilidades de empresários e líderes executivos, sobretudo quando empresas precisam pensar no futuro, desenhar estratégias, tomar decisões e cultivar a satisfação e realização de seus times.
Tem saída!
Ao lado de incentivar o desenvolvimento de competências, favorecer a expressão da individualidade é responsabilidade de sócios e líderes que atuam no dia a dia de seus negócios. Incentivar a individualidade deveria constar nos manuais e cadernos de governança como papel crucial dos líderes empresariais, como uma abordagem a ser incorporada na governança das organizações sob o seguinte ditado: em uma guerra de iguais, quem tem personalidade é rei.
Fique conectado
Acompanhe o Tem Saída nas redes sociais ou deixe seu e-mail para receber atualizações