Não sei bem ao certo quando começou, mas de uns tempos pra cá, “visão de dono” virou uma daquelas expressões que todo mundo repete com naturalidade, mas quase ninguém entende de verdade. Está nos discursos de liderança, nos valores das empresas, nos anúncios de cultura organizacional e até nas entrevistas de estágio. Mas será que a gente já parou, de fato, pra pensar no que essa frase carrega?

A verdade é que visão de dono… é para o dono. Não dá pra terceirizar o peso dessa frase. Muito menos tratá-la como mais uma competência a ser desenvolvida — daquelas que cabem numa planilha de avaliação de desempenho.

É o dono quem carrega o risco, quem responde com o próprio patrimônio, quem acorda de madrugada fazendo conta ou revendo uma decisão. É ele quem vive o todo do negócio — inclusive os bastidores mais silenciosos, os dilemas que não viram pauta e os fantasmas que não cabem no PowerPoint.

Quando a gente começa a pedir visão de dono para os outros, sem entregar a chave da casa, a conta não fecha. Queremos atitude, mas restringimos a autonomia. Recompensamos a iniciativa, mas mantemos o controle centralizado. Esperamos comprometimento, mas escondemos os dilemas reais. Resultado? Sobra cobrança e falta coerência.

E o que mais vemos por aí é essa incoerência travestida de discurso inspirador. Pedimos protagonismo, mas reprimimos a ousadia. Encorajamos o pensamento crítico, mas torcemos o nariz quando ele desafia o status quo. Se a liderança não estiver disposta a lidar com as consequências de um time engajado — e isso inclui ouvir o que não quer, conviver com divergências e ceder espaço — melhor nem romantizar o conceito de visão de dono.

Já vi empresas onde brilhar demais era quase uma infração. Onde ser protagonista incomodava. Onde a liderança pedia visão de dono, mas não suportava ser contrariada. Nesses ambientes, o discurso se esvazia. E o que poderia ser inspiração vira cinismo — frustração disfarçada de conformismo.

Liderar, nesse cenário, exige um novo pacto com o próprio papel. Exige fazer as pazes com a ideia de que abrir espaço é, sim, abrir mão de controle. Exige escutar com presença, não apenas ouvir para responder. E exige, sobretudo, alinhar discurso e prática — porque o time enxerga a contradição antes mesmo da frase terminar.

As pessoas, quando se sentem respeitadas, vistas e consideradas, naturalmente se envolvem. Não precisam se tornar sócias para cuidar bem da empresa. Basta que sintam que têm voz, valor e um lugar real na construção do caminho.

O papel do dono é cultivar esse ambiente. Sustentar conversas difíceis, dividir a travessia, acolher a vulnerabilidade. Fazer com que cada pessoa se sinta parte — mesmo que não ocupe o topo da pirâmide. Porque quando há pertencimento de verdade, o comprometimento vem junto, quase como consequência inevitável.

Cobrar visão de dono virou moda. Mas o que a gente precisa mesmo é cultivar a visão do outro. Só assim dá pra construir uma governança viva — que se sustenta menos nas regras e mais nas relações.

Tem saída. Sempre tem.

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